Uma questão: é possível “ler sem livros”?
As narrativas dos leitores herdeiros, ou os “nascidos em bibliotecas”, para quem os livros sempre estiveram presentes e foram bem cedo iniciados em uma viagem entre títulos, autores e gêneros.
As narrativas de leitores que nasceram em mundos sem livros, para quem a leitura é uma conquista, e não uma herança, sendo a instituição escolar fundamental nesse processo, mesmo se com ênfase nos cânones.
“[...] livros e escola se confundem, seja porque os livros possuídos são aqueles doados pela escola, ou que nela se encontram disponíveis ou ainda aqueles por ela exigidos, seja porque as leituras de entretenimento de que se tem lembrança são aquelas que figuram justamente nos programas escolares. A obrigação pedagógica de ler parece tornar-se ela própria a condição para a descoberta do prazer da leitura, e os textos estudados na classe se transformam em suportes de uma relação vivida como pessoal.” (CHARTIER, 2002, p. 8)
Em primeiro lugar – segundo Chartier (2002), considerando o que ocorreu na França até 1970 – porque até a televisão pode ser um instrumento de difusão social, caso tenha um forte projeto e compromisso cívico de oferecer para um público amplo e variado leituras sem livros: com adaptações de novelas às representações filmadas de obras canônicas e a suas reconstituições históricas e com programas dedicados aos livros ou a documentários sobre escritores, pintores ou monumentos – por exemplo. (Esse não parece ser o projeto televisivo no Brasil).
Em segundo lugar, ainda conforme Chartier (2002), porque é possível ler sem livros no mundo digital, por meio de novas modalidades de leitura. Nesse sentido, aceita-se “a ideia segundo a qual a palavra ‘leitura’ pode ser aplicada a formas de apropriação distintas daquela da escrita, como se fosse possível ler ‘textos’ que não se [encontram] em livros nem [foram] escritos usando o código verbal” (CHARTIER, 2002, p. 11) – ideia presentificada, por exemplo, no conceito de palavramundo, de Paulo Freire (2017).
Admitindo, então, que “[t]odas as produções simbólicas construídas a partir das relações entre os sinais que formam um sistema semântico são textos” (CHARTIER, 2002, p. 11), “os livros não são a única forma de artefato textual: existem muitas formas materiais dos textos e só algumas delas são livros e documentos escritos” (McKenzie, 2018 apud CHARTIER, 2002, p. 11).
É nesse contexto de discussão que Chartier lança uma importante questão “quanto ao nosso presente digital[:] [n]esse caso não é verdade que se lê sem livros? A pergunta supõe em primeiro lugar decidir se um livro eletrônico é um livro” (p. 12)
Segundo o autor, apesar do vocabulário, nesse caso, procurar domesticar a novidade, denominando-a com palavras familiares – “página”, “livro”, “imprimir” –, os fragmentos de textos que aparecem nas telas não são páginas, mas sim, composições singulares e efêmeras. Contrariamente ao livro impresso, o livro eletrônico não diferencia as produções escritas pela evidência de sua forma material.
Mais que isso, o tipo de leitura que se pratica nesse contexto é marcado por descontinuidades, apesar de aparentes continuidades: a leitura diante da tela é uma leitura descontínua, segmentada, ligada mais ao fragmento do que à totalidade.
Conforme Chartier (2002, p. 13):
A descontextualização dos fragmentos e a continuidade textual que não diferencia mais os diversos discursos a partir de sua materialidade original, própria, parecem contraditórios com os procedimentos tradicionais de leitura, que supõem tanto a compreensão imediata do tipo de conhecimento que se pode esperar de um discurso, graças à sua forma de publicação, como a percepção das obras como obras, ou seja, em sua identidade, totalidade e coerência. Esta é a razão pela qual não devemos menosprezar a originalidade do nosso presente [...]. A revolução do texto eletrônico é ao mesmo tempo uma revolução da técnica de produção e reprodução dos textos, uma revolução da materialidade, da forma, de seu suporte e uma revolução das práticas de leitura [...]
Dessa discussão, importante destacar que o mundo digital é muito mais que uma nova técnica de composição, transmissão e apropriação da escrita ou das imagens.
“o mundo digital produz sobretudo a transformação das categorias mais fundamentais da experiência humana, por exemplo, as noções de amizade multiplicada até o infinito, de identidade fictícia ou pluralizada, de privacidade ocultada ou exibida, como a invenção de novas formas de cidadania – ou de controle e de censura” (Chartier, 2002, p. 15).
Resumidamente, essa é a questão: a emergência de uma nova experiência, de uma nova ordem do discurso – ou de um novo ethos - nos afasta radicalmente do livro em sua dupla natureza, material e textual. E cada dia se lê mais sem livro, embora o desejável seja um futuro no qual haja coexistência de várias culturas escritas e a sobrevivência do livro, que parece indispensável.
A resposta quanto a esse futuro, em conclusão, parece pertencer aos “digital natives” (p. 16) da geração analógica que têm se iniciado na cultura escrita através da tela do computador e cuja prática de leitura e de escrita é imediata e naturalmente habituada à fragmentação dos textos.
CHARTIER, R. Os desafios da escrita. São Paulo: Ed. da UNESP, 2002.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2017.
MCKENZIE, D.F. Bibliografia e a sociologia dos textos. São Paulo: EDUSP, 2018.
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